Saturday 19 January 2008

Um passeio de autocarro...

Deixem que vos conte uma cena verdadeiramente divinal a que eu assisti no outro dia dentro de um autocarro aqui em Londres. A cena em si foi verdadeiramente ridícula e de mau gosto mas acredito que bem contada, até poderá ser motivo de um valente sorriso espontâneo.

Como estava eu a dizer, encontrava-me dentro de um autocarro, autocarro este que nem me servia minimamente mas não sei bem porquê lá estava eu. Eu queria ir para Oeste e o autocarro ia para Este mas fui assolado por um espírito aventureiro que me fez pensar: “Deixa lá ver onde é que isto vai parar”. Recordo-me que ao início da viagem ainda achava piada porque estava a ver coisas novas em Londres e sítios para os quais nunca iria até que por curiosidade fui perguntar ao motorista para onde é que ele afinal levava aquele valente caixote. A resposta dele deve ter soltado em mim o olhar mais aterrador que ele alguma vez viu que ele parou o autocarro logo ali, abriu a porta, eu fui para a outra faixa, apanhei mais um autocarro e comecei mais um “passeio”.

Bem, até aqui nada de novo mas também não foi para vos dizer que gosto, propositadamente, de passear pelas ruas de Londres com motorista privado que comecei a escrever isto.

A beleza do meu passeio decorre de uma discussão entre duas senhoras de respeitosa idade. Como é natural e por uma questão de delicadeza não me ocorreu questioná-las de quantos Invernos (aqui não há Primaveras) já tinham visto passar mas claramente já eram alguns, talvez uns setenta para uma e uns sessenta e qualquer coisa para outra.

Estava perante um choque de gerações.

Pois bem, vou-me deixar de “palhear” (arte de colocar palha) e vou directo ao assunto.

Recordo-me que a velha mais nova, Natércia aqui em nós, já se encontrava agarrada ao varão mesmo à minha frente, relativamente perto da porta central do autocarro. Não soou nada bem mas é a verdade nua e crua.

O autocarro encontrava-se uma verdadeira lata de sardinha e não havia espaço para uma pessoa andar mas quando a Esmeraldina entrou no autocarro, a velha que era mesmo velha, achou que podia andar até que alguma alma caridosa a deixa-se “assentar-se”.

No seu trajecto até ao dito poiso teve de passar por Natércia e aí começou a festa.

O autocarro estava silenciado pela monotonia da viagem, pelo tempo chuvoso lá fora, parecia que todas as pessoas desesperavam por chegar a casa, descalçarem os sapatos, estenderem-se ao comprido no sofá, rezarem para que os filhos hoje ficassem sossegadinhos e ali pudessem relaxar durante uma boa horinha. Eu, claro, já pensava no meu próximo passeio de autocarro.

Quando a Esmeraldina se cruzou com a Natércia, pediu-lhe delicadamente se a podia deixar passar, ao que a Natércia lhe respondeu: “A senhora quer ir para onde?”.

Esmeraldina, ainda começou por responder com um simples “Quero ir para ali", apontando para a ponta final do autocarro, mas quando se apercebeu do teor da pergunta, passou-se e disse já num tom mais agressivo tipo, olha o raio da catraia, hein?, “Mas o que é que tem a ver com a minha vida?”.

Estalou o verniz.

Natércia mandava bocas, Esmeraldina outras bocas mandava e toda a gente permanecia calada. Alguns deu a ideia que acordaram e calçaram-se depois de perceberem que afinal ainda não estavam em casa. É sempre bonito ver pessoas descalças nos transportes públicos.

Quando Natércia finalmente começou a “ceder” para deixar a Esmeraldina passar todos nós pensámos que a festa ia acabar. Eu confesso que esperava mais. Pura ilusão. Teria mesmo mais.

Conforme a Esmeraldina está a passar por Natércia, esta com um golpe de cotovelo prega-lhe um valente empurrão pelas costas. Como em qualquer filme de acções sério e com necessidade de engonhar mais uns minutos, eu próprio vi a cena em câmara lenta.

Enquanto a Esmeraldina se debatia para se aguentar em pé tive o discernimento para olhar as expressões das pessoas à volta. Algumas tinham uma expressão facial de puro regozijo para a situação que estavam a ver, uma senhora com o saco das compras à frente mostrava pânico como que a dizer “lá se me vão os ovos outra vez!”, outros pensavam “ora bolas, com esta ciática e uma velha estendida no chão, como é que vou sair na próxima paragem”. Enfim, muita coisa foi meditada naquele momento que parece ter durado uma eternidade. Eu, como é óbvio, pensava para onde iria a seguir, de autocarro.

Esmeraldina aguentou-se. Olhou para trás, fez um gesto agressivo a parecer que lhe ia às beiças com aquele punho direito repleto de cachuchos, virou-lhe as costas e foi-se sentar.

Ainda tiveram as duas a falar em voz alta durante mais uns cinco minutos. Não falavam para quem quer que fosse em especial mas preocupavam-se em falar alto para ver se a outra ouvia. Típico, não é?

Com isto tudo, acabou por ser um passeio bem giro. Uma viagem que demoraria vinte minutos do meu escritório a minha casa, acabou por demorar uma hora.

Valeu a pena.

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